Sobre o CEPESC

Salvador, Bahia, Brazil
CEPESC - Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão. Nasceu do sonho, da utopia e da luta pela criação de um entidade que refletisse, a partir da perspectiva cristã e no contexto da diversidade cultural, social e religiosa brasileira e da Bahia, o mundo dos nossos dias de um modo abrangente e total, ou seja, nas suas dimensões social, econômica, política, educacional e religiosa. Por isso, adotou o lema Dignidade e plenitude da vida e da criação. Organizada em 23 de novembro de 1996, é uma entidade de caráter cultural, educacional, social e religioso. Tem como objetivos estimular, fazer e divulgar pesquisas no campo político, econômico, social, cultural e religioso e realizar trabalhos de educação, sociais, culturais e religiosos. Contato: 3266-5526

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Brincando de Ioiô

Pr Antônio Ribeiro

Hoje é o meu 118° dia de estadia aqui no hotel, digo, Hospital das Clínicas em Salvador-Ba e, ouvir o meu silêncio tem sido um exercício diário na construção, desconstrução e edificação literal do meu “pensar”, o que me traz lógica para refletir sobre as próprias verdades, tropeçando na maioria das vezes, subindo e descendo, tentando alcançar o degrau do imaginário construído pelos meus achismos e experiências pessoais.
Quem na vida não brincou de ioiô? Desce-sobe...Sempre desce primeiro, depois, talvez suba. Para ele subir direito é preciso darmos um puxão, porém, se largarmos o ioiô ele se desenrolará, e a depender do impulso, poderá subir novamente, ou não. Ao encerrar a brincadeira, o melhor é fazê-lo subir por inteiro e toma-lo na mão. Se ele ficar em baixo sobrará aquele fio solto inconveniente, que poderá embaraçar. Assim tem sido a minha vida nestes últimos meses.
Já me “hospedei” aqui, neste período, em seis apartamentos, em andares distintos e, entre subidas e descidas, tenho me visitado com o encantamento do encontro e/ou reencontro comigo mesmo. Algo esplêndido! Sensação de estar nu diante de si mesmo.
E como diz o versículo 7 da nossa leitura: “Ainda que eu passe por angústias” (descer)... “Estendes a tua mão direita e me livras” (Subir). Sendo esta a dinâmica da minha vida.
É verdade que conseguimos subir de novo um pouco mas de desce-sobe em desce-sobe, quem nos segura mesmo lá em cima é DEUS.
Assim Seja!
Salvador, 17 de Novembro de 2011

DEZEMBRANDO

Marcos Monteiro


Começamos a dezembrar. Se no catálogo dos meses há humores apropriados, o de dezembro é o sentimento de fim de festa, apesar das duas grandes que nos aguardam no fim do mês, Natal e Ano Novo. Agosto é um mês insosso, sem gosto, dezembro traz uma nostalgia imponente, de quem tenta desamarrotar o terno entre os cacos no chão.  Dezembrando, começamos a balançar no último trecho da elipse que a terra descreve ao querer circundar o sol. Ciclo terminal arbitrário pois arbitrário foi o início referendado. Aliás, os últimos meses do ano são de uma arbitrariedade escandalosa, se lógicos seriam chamados mais propriamente de onzembro e dozembro. Surpreendentemente, os arbítrios criados sobre os tempos e os espaços são, às vezes, os mais severos árbitros da nossa curta existência.
            O olhar nostálgico de dezembro é olhar sobre si próprio, sobre o ano que passou, introspecção e retrospecção quase monástica, a vasculhar especialmente os tropeços de uma alma que jamais abandona a sua vocação imoral. Olhar inútil porque o tempo precisa de tempo para ser percebido e a demissão de Marina da Silva, a eleição de Obama e a crise das bolsas serão objetos de avaliação permanente dos escavadores da história.
            Não se espera que aconteça nada de novo em dezembro, como se esgotado em suas reservas. O tempo típico de dezembro não é o futuro, mas o passando, assim no gerúndio, que um particípio voraz tenta frustrado encapsular. Se ainda não compreendemos plenamente o significado do ano de 1968, a festa de quarenta anos que é 2008, estará se revelando pouco a pouco.
            É impossível escapar de certa dezembração; dezembro é detalhe em estrutura ecológica de dimensões cósmicas, impregnando o macro e o micro-universo. Os flocos de dezembro que se precipitam sobre a nossa pele não saem com água e sabão; e assim imersos nessa banheira dezêmbrica nos aquietamos adormecentes, escolhendo qualquer saudade para mastigar.
            Dezembradamente, vamos nos aproximando pouco a pouco das festas que encerram mês e ano. E são festas sobre começos. Natal, celebração do começo do homem mais celebrado de nossa história ocidental; Ano Novo, recomeço teimoso da insistência da terra em arrodear o sol. Ambas são festas que reúnem passado e futuro, sendo o Ano Novo festa de passagem, festa de intervalo, nem dezembro nem janeiro, mas forçada a começar em dezembro e terminar em janeiro.
            Porque por mais que dezembro nos convide à reflexão, por mais que o passado seja cheio de lições e surpresas a dezembromar, precisamos cumprir os ritos de passagem de nossa civilização e, mesmo que isso pareça uma violência, iremos necessariamente ajaneirar.
             

A VIOLÊNCIA ESTRUTURAL NA NOSSA VIDA COTIDIANA

        Marcos Monteiro

O conceito de violência simbólica aponta para um acréscimo de violência à violência estrutural própria do sistema. Violência sem agressão física, aparentemente não-violenta, mas de eficácia muito maior porque causa não apenas dor, mas dor significada. Violência dirigida não contra o corpo, mas contra o desejo, a alegria, o amor e a vontade de viver. Violência contra a capacidade de transcendência humana, contra a possibilidade do ser humano ser mais do que um corpo.
Incruenta e indolor é o espaço de todas as outras dores, a autorização organizada para as violências físicas, legalizadas e ilegais. A violência estrutural afunila a sociedade, criando uma desigualdade tão desigual que autoriza os sentimentos de injustiça e espoliação sistêmicos, justificando o egoísmo, o crime, a matilha humana prestes a se lançar sobre pessoas e objetos, com a fúria do coração voraz.
Para se manter, essa estrutura cria os seus símbolos, os seus mitos, seu apropriado discurso acompanhado de apropriadas imagens. Fugir de sua lógica é tarefa inglória, quase impossível, surpreendemos a nós mesmos repetindo os seus rituais e divulgando sua pregação doutrinária. E a nossa surda indignação se dirige contra os efeitos desse absurdo sistema, mantendo-nos reverentemente no círculo de manutenção, na eternização da ordem estabelecida.
O nosso cotidiano tem de estabelecer limites e competências, para entender que o sistema não nos leva a direitos universais, assegurados por uma de suas organizações mais simbólicas, a ONU, na “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. O artigo XXV, por exemplo, nos assegura o direito a um padrão de vida digno, com saúde, alimentação, vestuário, cuidados médicos, e segurança na velhice, invalidez ou em dificuldade pessoal de subsistência. Pelos outros artigos, temos direito a emprego, moradia, instrução, locomoção, participação política, opinião, crença, lazer e outras coisas mais. A maior parte da população mundial recebe um pequeno salário para garantir tudo isso, quando tem emprego.
Em um sistema hierárquico, concentrador de riquezas, oligárquico e plutocrático, cultuamos o mito da democracia, ou das democracias (sexuais, raciais, políticas, intelectuais, religiosas), e vivemos todos a experiência de um onipresente mercado que transforma tudo em produto de consumo, inclusive o amor. A desigualdade estrutural, portanto, é a fonte da desigualdade cultural e da desigualdade social.
Nesses termos, a violência criminal, não é uma ameaça ao sistema, mas a continuidade natural do mesmo, certamente em sua forma mais crua e doentia. É o sintoma de uma doença maior e como todo sintoma dói e dói muito. A doença crônica, continuada todo o dia, nem mesmo é notada ou percebida, apenas vivida, às vezes até celebrada, que toda doença tem também suas esquisitas vantagens.
Nos nossos dias, a violência criminal atinge níveis despropositais, e isso nos faz mover em um ambiente de medo, em que a banalidade da morte aponta para a fragilidade da vida. Mas talvez isso seja apenas a radiografia, o avesso, o sintoma de um quadro infinitamente mais cruel, que seria o próprio sistema capitalista em que nos movemos. Nesse sistema nunca teremos o direito ao artigo XXVIII: “Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados”.


UMA HISTÓRIA DE NATAL

                                                                                          Pr.  Djalma Torres

Há muito tempo atrás, em uma terra bem distante da nossa, viveu um homem muito simples, que tinha o costume da falar com Deus. Ele morava numa pequena vila, de nome estranho, no interior do seu país.  
Apesar de humilde e morar bem longe da cidade, ele pensava muito no seu país que estava dividido e tinha muitos problemas: Havia muita injustiça e maldade, contra os pobres, as mulheres e as crianças; havia alguns homens ricos e milhares na miséria; os governantes oprimiam o povo e se corrompiam; os líderes religiosos eram muito hipócritas: em nome de Deus exploravam o povo e ainda diziam que Deus estava com eles.
Depois de algum tempo, um problema ainda mais grave surgiu. Um povo guerreiro, forte e poderoso ameaçou invadir a sua terra e escravizar a sua gente. O homem  que falava com Deus considerou a situação muito difícil: Infidelidade, injustiça, corrupção e hipocrisia religiosa dentro do reino, e ameaça de domínio e escravidão de fora.
O homem simples e do interior até chorou, mas depois achou que não devia ficar parado e nem calado. Ele falou com o seu Deus, deixou o lugar onde morava por algum tempo e foi para a cidade grande. Lá, começou a denunciar os problemas, a anunciar o castigo e a futura providência de Deus.
O homem simples e da roça, que falava com Deus, discursava nas ruas, nas praças e no lugar sagrado de oração do seu povo. Ele condenava as injustiças, a maldade dos governantes, a hipocrisia dos religiosos e a perversidade dos ricos e poderosos.
E disse coisas muito tristes: Que o poderoso exército inimigo ia invadir e dominar a sua terra, muita gente iria ser levada para o cativeiro e longe do seu país iria ficar por muitos anos. Vários deles morreriam no exílio. E disse também que o lugar sagrado de oração ia ser destruído pelos invasores.
Mas depois de falar todas as coisas que o seu Deus mandou que ele falasse, o homem simples e do interior falou de esperança e anunciou as promessas de Deus, as coisas boas que iriam acontecer no futuro. Ele disse que um dia a situação iria ser diferente, que ninguém mais seria escravo de ninguém, todos seriam livres; que os pobres, as mulheres e as crianças seriam respeitados; e que todos seriam importantes para Deus. Ele não disse quando esse milagre iria acontecer, mas disse até o nome do lugar.
E aconteceu que um homem da cidade, que gostava de escrever, ouviu tudo, anotou cuidadosamente as suas palavras, que foram passando de geração para geração, de povo para povo,  até chegar a nós. E as palavras do homem que falava com Deus foram as seguintes:
“ E tu, Belém Efrata, pequena demais para figurar como grupo de milhares de Judá, de ti me sairá o que há de reinar em Israel, e cujas origens são desde os dias da eternidade.” (Miquéias 5:2).
Ah! O nome do homem que falava com Deus era Miquéias. Ele anunciava o nascimento de Jesus Cristo. 
Feliz Natal para todos.
Pr. Djalma Torres. Texto publicado no livro Caminhos de Pedra
de sua autoria, editado em 2011 pela Curviana.

SOBRE DEUSES E REZAS

 Rubem Alves


Perdida no meio dos viajantes que enchiam o aeroporto, ela era uma figura destoante. A roupa largada, os passos pesados, uma sacola de plástico pendurada numa das mãos – esses sinais diziam que ela já não mais ligava para a sua condição de mulher: não se importava em ser bonita. Pensei mesmo que se tratava de uma freira. Seu comportamento era curioso: dirigia-se às pessoas, falava por alguns momentos, e como não lhe prestassem atenção, procurava outras com quem falar.  Quando vi que tinha uma Bíblia  na mão, compreendi tudo: ela se imaginava possuidora de conhecimentos sobre Deus que os outros não possuiam e tratava de salvar-lhes as almas.
Meu caminho me obrigava a passar perto dela, e, quando olhei para o seu rosto de perto, levei um susto: eu o reconheci de outros tempos, quando era uma moça bonita que ria e brincava e para quem olhávamos com olhares de cobiça.
            Não resisti e chamei alto o seu nome. Ela se espantou, olhou-me com um olhar interrogativo, não me reconheceu. Com razão. Os muitos anos deixam suas marcas no rosto.
-  Eu sou o Rubem!
Seu rosto se iluminou pela lembrança, sorriu, e pensei que poderíamos nos assentar e conversar sobre as nossas vidas. Mas a preocupação dela com a minha alma não permitia essas perdas de tempo com conversa fiada. E tratou de verificar se o meu passaporte para a eternidade estava em ordem.
- Você continua firme na fé! Ela afirmou interrogativamente.
- Mas de jeito nenhum, respondi. Então você deixou de ler a Bíblia? Pois lá está dito que Deus  é espirito, vento impetuoso que sopra em todo lugar, o mesmo vento que ele soprou dentro da gente para que respirássemos, fôssemos leves e poudéssemos voar. Quem está no vento não pode estar firme. Firmes são as pedras, as tartarugas, as âncoras. Você já viu um papagaio firme? Papagaio firme é papagaio no chão, não voa. Pois eu estou mais é como uruvu, lá nas alturas, flutuando ao sabor do imprevisível Vento Sagrado, sem firmeza alguma, rodando em largos círculos.
Ela ficou perdida, acho que nunca havia ouvido resposta tão estranha. Mudou de tática e tentou pegar a minha alma do outro lado. Desatou a falar de Deus, informou-me que ele é maravilhoiso, etc., etc., como se estivesse no púlpito em celebração de domingo.
            Refugei.
            - Acho que quem não está firme em Deus é você – eu disse.
            Olha, passei a noite toda respirando, estou respirando desde que acordei, e juro que agora é a primeira vez que penso no ar. Não pensei nem falei no ar porque somos bons amgios. Ele entra e sai do meu corpo quando quer, sem pedir licença. Mas a história seria outra se eu estivesse com asma,  os brônquios apertados, o ar sem jeito de entrar, ou como  naquele anúncio antigo do xarope Bromil, o coitado do homem sufocado por uma mordaça, gritando pelo ar que lhe faltava. Por via de dúvidas até andaria com uma garrafa de oxgênio na bagagem, para qualquer emergência.
            Pois Deus é como o ar. Quando a gente está em boas relações com ele não é preciso falar. Mas quando a gente está atacado de asma, então é preciso ficar gritando por Deus. Do jeito como o asmático invoca o ar. Quem fala com Deus o tempo todo é asmático espiritual. E é por isso que andam sempre com Deus engarrafado em Bíblia e noutros livros e coisas de função parecida. Só que o vento não pode saer engarrafado...
            Aí ela viu que minha alma estava perdida mesmo e, como consolo, fez um sinal de adeus e disse que iria orar muito por mim. Aí eu protestei, implorei que não o fizesse. Disse-lhe que eu tinha medo de que Deus ficasse ofendido. Pois há rezas e orações que são ofensas. Pois é óbvio: se vou lá, bater às portas de Deus, pedindo que ele tenha dó de alguém, eu lhe estou imputando duas imperfeições que, se fosse comigo, me deixariam muito bravo.
            Primeiro, estou dizendo que  não acredito no amor dele. Deve ser meio fraquinho, sem iniciativa, preguiçoso, à espera do meu cotucão. Se eu não der a minha cotucada, Deus não se mexe. E isso não é coisa de ofender Deus? Segundo, estou sugerindo que Ele deve andar meio esquecido, desmemoriado, necessitando de um secretário que lhe lembre suas obrigações. E trato de, diariamente, apresentar-lhe a sua agenda de trabalho. Mas está lá  nos Salmos e nos evangelhos que Deus sabe tudo antes que a gente fale qualquer coisa. Ora, se a gente fica no falatório é porque não acredita nisso. Não acredito em oração em que a gente fala e Deus escuta. Acredito mesmo é na oração em que a gente fica quieto para ouvir a voz que se faz ouvir no meio do silêncio.
            - Veja você. Tive um filho que estudava longe. Eu gostava dele. Ele gostava de mim. De vez quando a gente se falava ao telefone. E o dinheiro da mesada ia sempre, com telefonema ou sem telefonema. Agora imagine: de repente começo a receber telefonemas dele três vezes por dia e mensagens por sedex, cartas e telegramas louvando o meu amor, agradecendo a minha generosidade.,.. Você acha que isso me faria feliz? De jeito nenhum. Concluiria que o meu pobre filho havia endoidecido e estava acometido de um terrivel medo de que eu o abandonasse. Pois é assim mesmo com Deu: quem fica o dia inteiro atrás dele, com falatório, é porque desconfia dele.  Mas o pior é o gosto estético que assim se imputa a Deus. Uma pessoa que gosta de passar o dia inteiro ouvindo os outros repetindo as mesmas coisas, as mesmas palavas, as mesmas rezas, pela eternidade afora, não deve ser muito boa da cabeça. Pra mim isso é o inferno. Quem reza demais acha que Deus não funciona bem da cabeça. Acho que ele ficaria mais feliz se, em vez do meu falatório, eu lhe oferecesse uma sonata de Mozaret ou um poema de Adélia.  
            Mas aí o alto-falante chamou o meu vôo, tive de me despedir, e imagino que ela ficou aflita, temerosa de que Deus derrubasse meu avião com um raio. Mal sabia ela que Deus nem mesmo havia ouvido a nossa conversa pois, cansado das doidices dos adultos, ele foge sempre que vê dois deles conversando e se esconde deles, disfarçando de criança. 

Artigo publicado na Revista Tempo e Presença, Ano 17, No 282, julho/agosto de 1995. Publicação de Koinonia, Rio de Janeiro.