O conceito de violência simbólica aponta para um acréscimo de violência à violência estrutural própria do sistema. Violência sem agressão física, aparentemente não-violenta, mas de eficácia muito maior porque causa não apenas dor, mas dor significada. Violência dirigida não contra o corpo, mas contra o desejo, a alegria, o amor e a vontade de viver. Violência contra a capacidade de transcendência humana, contra a possibilidade do ser humano ser mais do que um corpo.
Incruenta e indolor é o espaço de todas as outras dores, a autorização organizada para as violências físicas, legalizadas e ilegais. A violência estrutural afunila a sociedade, criando uma desigualdade tão desigual que autoriza os sentimentos de injustiça e espoliação sistêmicos, justificando o egoísmo, o crime, a matilha humana prestes a se lançar sobre pessoas e objetos, com a fúria do coração voraz.
Para se manter, essa estrutura cria os seus símbolos, os seus mitos, seu apropriado discurso acompanhado de apropriadas imagens. Fugir de sua lógica é tarefa inglória, quase impossível, surpreendemos a nós mesmos repetindo os seus rituais e divulgando sua pregação doutrinária. E a nossa surda indignação se dirige contra os efeitos desse absurdo sistema, mantendo-nos reverentemente no círculo de manutenção, na eternização da ordem estabelecida.
O nosso cotidiano tem de estabelecer limites e competências, para entender que o sistema não nos leva a direitos universais, assegurados por uma de suas organizações mais simbólicas, a ONU, na “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. O artigo XXV, por exemplo, nos assegura o direito a um padrão de vida digno, com saúde, alimentação, vestuário, cuidados médicos, e segurança na velhice, invalidez ou em dificuldade pessoal de subsistência. Pelos outros artigos, temos direito a emprego, moradia, instrução, locomoção, participação política, opinião, crença, lazer e outras coisas mais. A maior parte da população mundial recebe um pequeno salário para garantir tudo isso, quando tem emprego.
Em um sistema hierárquico, concentrador de riquezas, oligárquico e plutocrático, cultuamos o mito da democracia, ou das democracias (sexuais, raciais, políticas, intelectuais, religiosas), e vivemos todos a experiência de um onipresente mercado que transforma tudo em produto de consumo, inclusive o amor. A desigualdade estrutural, portanto, é a fonte da desigualdade cultural e da desigualdade social.
Nesses termos, a violência criminal, não é uma ameaça ao sistema, mas a continuidade natural do mesmo, certamente em sua forma mais crua e doentia. É o sintoma de uma doença maior e como todo sintoma dói e dói muito. A doença crônica, continuada todo o dia, nem mesmo é notada ou percebida, apenas vivida, às vezes até celebrada, que toda doença tem também suas esquisitas vantagens.
Nos nossos dias, a violência criminal atinge níveis despropositais, e isso nos faz mover em um ambiente de medo, em que a banalidade da morte aponta para a fragilidade da vida. Mas talvez isso seja apenas a radiografia, o avesso, o sintoma de um quadro infinitamente mais cruel, que seria o próprio sistema capitalista em que nos movemos. Nesse sistema nunca teremos o direito ao artigo XXVIII: “Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados”.
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