Quando a
Academia de Letras da Bahia - ALB foi
fundada, em 1917, o terreiro Ilê Axé Opô
Afonjá, em São Gonçalo
do Retiro, já tinha sete anos de existência. Comandado pela ialorixá Eugênia
Anna dos Santos, a Mãe Aninha (1869-1938), o candomblé tinha preocupações
básicas, como garantir seu próprio
funcionamento e o bem-estar de seus fiéis. Bem distantes das questões que
ocupavam a elite intelectual da cidade.
Quase um século
depois, os caminhos das duas instituições se cruzam hoje, com a posse de Mãe
Stella de Oxóssi, 88 anos, primeira mãe de santo a se tornar imortal. A sessão
acontece às 20h, na sede da ALB, em Nazaré, com saudação feita pela escritora e
acadêmica Myriam Fraga.
No discurso que
fará para os colegas, Mãe Stella refletirá sobre o significado de sua entrada
na academia. “Foi uma surpresa agradável. Nem sabia que tinha espaço para mim
naquela casa”, cutuca Mãe Stella. Mas, depois de refletir bem sobre o assunto,
concluiu que já “fez por onde”. Ou, em outras palavras, que a distinção é fruto
de seu reconhecido trabalho em prol da religião.
“Acho que fiz muito para mostrar o que nós
somos e por que estamos aqui”, afirma Mãe Stella, quinta na linha sucessória do
Ilê Axé Opô Afonjá. “Quando comecei, era tudo muito escondido. Quando se
perguntava a religião de alguém do candomblé ela dizia que era católica”,
afirma a ialorixá, uma das primeiras lideranças a se manifestar amplamente
contra o sincretismo na religião.
Narrativas
Na Academia, Mãe
Stella vai ocupar a cadeira
33, cujo patrono é o poeta Castro Alves (1847-1871) e teve como último
ocupante o historiador Ubiratan Castro (1949- 2013), de quem era amiga. “Acho
que são desígnios do destino”, afirma Mãe Stella, que é admiradora da poesia de
Castro Alves. Substituir Ubiratan, um dos poucos negros na história da casa
baiana, também é motivo de orgulho.
“Vamos esperar
que outros negros ocupem esses lugares. No meu caso, sou mulher, negra e
ialorixá... Parece que a humanidade está se humanizando”, diz, com largo
sorriso. Além da importância religiosa de Mãe Stella, sua escolha para a
Academia destaca o interesse demonstrado pela literatura e a preocupação em
falar sobre as tradições e principais fundamentos do candomblé.
“O que não está
escrito some, se perde”, resume Mãe Stella, que é autora de seis livros,
publicados a partir de 1988. O último, lançado
ano passado, é a coletânea Opinião, que reúne textos de sua coluna no
jornal A Tarde.
Filha de uma
família classe média, Mãe Stella conta que sempre gostou de ler. Teve várias
fases, como os romances açucarados da adolescência. Ela é formada em Enfermagem
pela Ufba, profissão que exerceu até passar a se dedicar integralmente à
religião.
Antigo x novo
Desde que foi
iniciada no candomblé por Mãe Senhora (1942-1967), aos 14 anos, ela começou a estudar aquele novo mundo. “Passei a prestar atenção
nos preceitos, nas conversas e a fazer muitas anotações, pois nós temos nossa
própria teologia”. Talvez o livro mais emblemático da ialorixá seja Meu Tempo É
Agora (1993), no qual ela defende a importância do texto escrito dentro da
religião, ainda fortemente baseada na oralidade.
O próximo livro
de Mãe Stella, que tem dois volumes e já está pronto, é sobre o jogo de búzios.
“É o oráculo essencial, a forma de nos
comunicarmos com os orixás”, resume, acrescentando que não quer que as coisas
que aprendeu fiquem só com ela. Assim como suas outras obras, destaca, trata-se
de um trabalho coletivo, parceria com vários filhos de santo, que ajudam na
pesquisa e na digitação. “No computador, sou analfabeta”, brinca.
No comando do Afonjá desde 1976, Mãe Stella
foi responsável por inciativas como a Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos
e o Museu Ilê Ohum Lailai - Casa das Coisas Antigas, que funcionam dentro do
próprio terreiro, ampliando sua atuação. O museu, criado em 1999, é o xodó da ialorixá. Ela conta que a Casa de
Oxalá, a maior nas dependências do terreiro e onde acontecem vários preceitos
religiosos, acumulava uma grande quantidade de coisas antigas, com muito valor
simbólico.
“Tinha muita
coisa boa, roupas, ferramentas e objetos de culto. Até a capa do Xangô de Mãe
Aninha estava lá. Daí veio a ideia do museu”, recorda. A escola, de 1978, era um desejo antigo de
Mãe Aninha, que queria ajudar na alfabetização da comunidade do terreiro. “Ela
costuma dizer ‘eu hei de ver os meus filhos servindo a Xangô com um
anel no dedo’”, recorda, referindo-se ao orixá que rege o Afonjá.
Oxóssi
Além de sua
entrada para a Academia de Letras da Bahia, o dia de hoje é muito especial para
Mãe Stella. Exatamente nesta data ela completa 74 anos de iniciação religiosa e
dedicação ao orixá Oxóssi. Por conta da posse, a festa no terreiro será apenas
para os mais chegados. Mãe Stella, que já dedicou um livro a Oxóssi, diz que o
desafio do candomblé é aprender a se relacionar com as forças da natureza.
“Nós não sabemos
exatamente como é Oxóssi. Estas representações que temos - aponta para
esculturas e quadros de sua sala de visitas - são interpretações dos artistas”.
Na mitologia, continua, seu orixá é guerreiro, caçador e justo, pois só mata
para comer.
Entrar para o
clube dos imortais no mesmo dia de seu orixá deve ser, no mínimo, um bom sinal.
“Espero que minha entrada seja para somar”, diz Mãe Stella, que acredita que,
na atualidade, o principal desafio do candomblé é a seriedade. “Para quem vem
ver e para quem vem participar. Você só tem respeito se respeitar”.
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